terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Memórias


Barreiro, sete e trinta da manhã. Mês de Julho e já se sente o calor logo nas primeiras horas do dia. Chega ao cais o barco vindo de Lisboa, e nele são às centenas os que chegam e se preparam para seguirem para férias. Ali mesmo ao lado apitam as buzinas dos comboios. É grande a azáfama na estação. No edifício cor de rosa junto ao Tejo, com a sua arquitectura a lembrar paragens árabes, choram as crianças, despedem-se os amantes apaixonados. Famílias inteiras se apressam a carregar as suas trouxas nos breves metros que separam os barcos dos comboios. Ali na gare, já se forma o comboio. Apita a locomotiva de manobras que traz mais carruagens. Hoje o comboio vai composto. Comboio formado, parte a locomotiva de manobras vem a locomotiva que o há-de levar a outras terras. Grande monstro laranja cuja sonora buzina ecoa por todos os cantos e ensurdece os que ali esperam já pelo próximo comboio. “É para o Alentejo este”, alguém ali ao lado esclarece. O comboio para o Algarve virá depois. Apita a locomotiva, chamando os que se demoram nas plataformas, avisando que está pronta para seguir. Chega o Chefe da Estação, conversa com o Revisor do comboio. Caras familiares, todos os anos os revemos. O Revisor embarca, acena ao Maquinista. O Chefe da Estação prepara a bandeira e o apito, anda uns metros, dá a partida ao comboio. Mais buzinas. Estrondoso som que arranca e estremece até às fundações do edifício e o leito do Tejo. Começa o movimento, mais sons se misturam. Furiosos acenos das janelas e das plataformas. O choro dos amantes, afastados à força. O até breve das famílias. Na linha do lado já se apronta o comboio para Setúbal. Ali outro monstro laranja, ou amarelo se prepara. É o que houver e se arranjar, como estiver segue. Do outro lado do Tejo, na capital era a ordem possível no caos da Estação do Rossio. Aqui procura-se apenas apaziguar o caos com um pouco mais de desordem ordenada. Correm os ultimos passageiros, e arranca com menos barulho o comboio, devagar, cumprimentando e acenando entre si os maquinistas, que o comboio para o Algarve já se forma. Chegam os vagões para as bagagens. “Hoje o comboio para Lagos é a parte de trás ou a da frente do comboio?” Seguem juntos viagem. Mais carruagens, parte delas ficarão mais tarde em Tunes, de onde vão até Lagos. O resto segue viagem tranquila até Vila Real de Santo António. Nas plataformas conversa-se. Mais famílias se despedem tranquilamente, e organizam mais uma vez o farnel. “Ainda são uma série de horas de viagem”. Passa o ferroviário, e carruagem por carruagem pendura a chapa azul com o seu destino. Vila Real de Santo António. É a nossa. Viajamos em primeira classe. Desta vez somos cinco e ocupamos um compartimento. Sobem as malas.
As caixas com lembranças para a família no Algarve. A cesta com o farnel. Apronta-se o comboio. Sente-se um ligeiro choque, chegou a locomotiva. Cada vez mais gente a correr para o comboio. A família que cá fica desce do comboio para a plataforma, e ali vão ficar até o comboio seguir viagem. Mandam-se recomendações para a família que lá está “em baixo”. “Não se esqueçam de comer”.”Aproveitem bem a praia”.”Divirtam-se muito”.”Vão à Espanha às compras? Tragam-me um saquinho de caramelos.”A locomotiva apita, o Chefe de Estação acompanha e acena a bandeira. Sente-se um esticão e começa o movimento. Vamos de férias.”Até breve”- acenam os meus avós da plataforma. No compartimento vamos cinco. Na plataforma ficaram dois. Quando lá chegarmos quem nos vai desta vez esperar à estação? Vão todos, pois claro, que só nos vêem uma vez por ano. Compõem-se as malas, liga-se um rádio a pilhas. Toca a Renascença ou a Comercial, é o que temos. Ali estou, colado na janela a ver passar a paisagem cada vez mais depressa. Ficou para trás o Barreiro. Estão à frente, as férias de verão.

(Nota: Este texto, escrito integralmente de memória foi uma forma de reviver o local que hoje, trinta anos depois está completamente deserto e abandonado. Sem linhas, sem comboios, sem gente, sem ruídos, sem sons, sem movimento.)

3 comentários:

Rui's Soul disse...

Me gusta, e ainda tive direito a sneak peek xD

André disse...

Andei bastante nesse comboio quando estive na tropa em Setúbal - há uns 22 ou 23 anos.

João Roque disse...

Que recordações desta estação do Barreiro.
Muitas vezes durante os 4 anos que dei aulas em Serpa aí tomei o comboio que me deixava na estação Serpa-Brinches, ainda longe da bela vila (hoje cidade)...
O texto está óptimo, e só poderia ser escrito por quem goste de comboios, claro.